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Intervalo e, no próximo bloco, música

  • Foto do escritor: Samuel da Rosa Rodrigues
    Samuel da Rosa Rodrigues
  • 26 de mar. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 14 de abr. de 2024

Participando com os colegas de banda de um programa de rádio sobre os grandes sucessos da carreira, o baterista foi questionado sobre a sua participação na criação das músicas. O locutor, de saco cheio daqueles tatuados e querendo alguma história polêmica ou cabeluda, demonstrava zero interesse na entrevista. Quando falou com o músico, deixou sua opinião chegar antes da pergunta. 

— Você está cercado de artistas super talentosos, que compuseram canções maravilhosas. Mas qual foi a sua principal contribuição na bateria para a carreira de vocês?

Os colegas de banda esboçaram um sorriso amarelo e agradeceram por estarem no rádio e não na TV. O produtor do programa escondeu o rosto nas mãos, envergonhado. E o locutor seguiu lendo os comentários das pessoas na transmissão pela internet, ignorando a pergunta desagradável e a possível resposta.

O baterista refletiu, pensando se era o momento certo de contar aquela história para o locutor e para a banda. Depois de alguns segundos em silêncio, deixando todos nervosos, falou.

— Tudo começou com uma fã. Foi no nosso primeiro show, naquele boteco minúsculo. ‘Cês lembram? Tinha uma menina dançando sozinha, em um canto. Ela não parecia estar com ninguém. Ela não parecia estar ali. Mas ela me ouvia. Eu passei o som sozinho, com ela como plateia e ela dançou cada uma das batidas que toquei. Ela fechava os olhos e mexia o corpo, balançava os braços, dobrava os joelhos, chacoalhava os ombros… ela “sentia” a música que eu estava tocando. Depois, mais tarde, no show, foi a mesma coisa. Ela fazia parecer que eu estava tocando pra ela. E quando eu percebi, era exatamente isso que eu estava fazendo.

O entrevistador teve a sua atenção conquistada.

— A sua contribuição para a banda foi a inspiração que aquela menina te deu, então, isso?

O baterista sorriu.

— Sim! Quando voltei pra casa e sentei no meu kit de novo, eu fechei os olhos e lembrei dela no canto daquele bar, dançando. E todas as vezes que peguei as baquetas nas mãos, era ela que eu imaginava. Ela dançaria essa música lenta assim? Curtiria esse boogie assim? Inventaria uma coreografia pra essa música? O meu parâmetro tornou-se ela. Eu fechava os olhos e ela aparecia. Se ela dançasse, era uma boa música. E eu não podia decepcionar ela. Ela não podia parar de dançar. Eu com certeza devo o sucesso da minha carreira a ela.

O entrevistador disparou a pergunta engatilhada, acompanhada de uma risada cretina.

— E você encontrou essa “groupie inspiradora” novamente?

O baterista baixou a cabeça, resignado.

— Não. Ela morreu na noite do nosso primeiro show, em um acidente de carro, voltando pra casa. Mas está sempre comigo.

O resto da banda não sabia dessa fã misteriosa e conhecia a história junto com o locutor.

— Em memória, você quer dizer. Ela está sempre com você em memória.

— Em tudo! Ela é minha musa. E a musa da criatividade é assim, você sabe: sempre presente quando você se apresenta para o trabalho. Ela é como uma bruxa. Minha guia espiritual. Uma mentora. Eu só preciso fazer o ritual certo para chamar ela.

O locutor riu.

— Temos aqui então, ouvintes, em primeira mão, a confirmação de que o sucesso da banda é místico e sobrenatural — Ele tentou puxar uma risada dos outros integrantes e de todos no estúdio — E como é o ritual para chamar essa bruxa inspiradora, musa da criatividade?

O baterista hesitou.

— Você quer conhecer ela?

O locutor sorriu, debochado.

— Claro!

O músico foi até a bateria montada no canto do estúdio, pronta para ser tocada depois do intervalo, e pegou um par de baquetas. Girou elas entre os dedos e bateu uma baqueta na outra, repetindo o ritual que fazia há anos.

— Um, dois, três, quatro!

Os outros esperaram algo acontecer. Até que o baterista olhou por cima do ombro do entrevistador, sorrindo para alguém.

— Seja bem-vinda, meu bem.

No canto do estúdio, uma menina com a camiseta da banda esperava empolgada o início da primeira música. Seu rosto era pálido, com olheiras profundas, que se misturavam à maquiagem com glitter roxo e as feridas que tinha no rosto. Ela foi até o entrevistador, colocou a mão no seu ombro e apontou para o microfone. Sentindo o toque frio, o radialista usou a coragem que lhe sobrou para falar tudo o que conseguiu no momento.

— Intervalo e, no próximo bloco, música.



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