HORA EXTRA - Capítulo 1: Suculentas Corajosas
- Samuel da Rosa Rodrigues
- 31 de mar. de 2024
- 6 min de leitura
Quarta-feira, 22h37. A sala no quinto andar do prédio comercial era a única que ainda tinha luzes acesas na rua toda. Carlos tinha plena consciência disso porque era o único que estava trabalhando naquela hora. Pelo menos era isso que achava quando desligou a luz da sala. Em meio à escuridão da noite e ao silêncio que atinge as quartas-feiras de hora extra, ouviu um som.
“Tic... tic... tic...”
O sensor de aproximação acendeu a luz do corredor. Olhou para fora. Seu carro era o único estacionado, mas pelo visto não estava sozinho. Como?
— Carlos, você tá aí ainda? Achei que só estava eu no prédio.
A voz de Gabriela foi um alívio para os seus ouvidos. Sempre era, toda vez que ela aparecia na sua porta durante o dia, mas naquele momento em que diferentes cenários se passavam pela sua cabeça a colega era a única pessoa que ele gostaria de ver.
— Tá tudo bem? — Ela entrou na sala e acendeu a luz de novo. — Você está com os olhos meio... esbugalhados.
— Tá tudo certo. Preocupado. Preciso comprar ração pra minha gata. Marcar um exame. Fazer ligações. E tomar menos café. Fim de mês, sabe.
— Mas hoje é dia 15. — Ela apontou para o calendário em cima da mesa dele e virou uma folha — Ok, você não está nem no dia e nem no mês certo.
Carlos ficou vermelho. Ficava atrapalhado quando estava perto dela, mas esse já era um novo nível de vergonha alheia.
— Gosto de deixar o calendário nos meses que têm mais feriados, é uma visão que me deixa feliz. — Resolveu mudar de assunto. — Mas e você, o que está fazendo aqui ainda? Só o meu carro está no estacionamento, achei que eu estava sozinho.
— Ah, às vezes fico aqui até tarde adiantando algumas coisas. — Ela roubou uma caneta da mesa dele e fez um coque no cabelo. — Assim aproveito para ficar em silêncio um pouco e coloco os pensamentos em dia. — Terminou o coque com maestria. — Tcha-ram! Que tal? Essas canetas vagabundas do escritório só servem para isso.
— Coques bonitos não vão me distrair do fato de que você disse que precisa colocar os pensamentos em dia. — Ele apontou para a caneta. — E eu preciso dessa caneta para a reunião de amanhã, às 7h, com a diretoria.
— Por quê? Essa caneta não vai salvar a sua vida, todos os diretores desta empresa são carecas! — A risada gostosa dela ecoava no silêncio do corredor. — Vamos lá, já são quase 23h, vão inventar histórias sobre nós dois até essa hora aqui. Ou pior, vamos levar advertências por hora extra desnecessária.
Carlos vestiu o casaco e pegou a sua pasta com documentos.
— Advertência é pior?
Ela parou na porta e piscou para ele.
— Advertência não tem graça na mesa do bar.
Carlos registrou mentalmente aquela fala para refletir mais tarde. A luz do corredor apagou de novo.
— Você não quer sair da sala para ativar o sensor de novo? Só pra gente não ficar no escuro.
— Eu acharia minha sala até de olhos fechados, fica tranquilo.
— Então tá bom. — Ele apagou a luz da sala e os dois ficaram na escuridão. — Confesso que me assustei antes, quando a luz do corredor acendeu sozinha e ouvi seu salto se aproximando.
— Como assim? — Ela apontou para os pés. — Estou descalça.
A luz do corredor acendeu sozinha de novo com os dois dentro da sala. O som se repetiu.
“Tic... tic... tic...”
— Isso não é o som de um salto?
— Não. Com que mulheres você tem saído?
— Poucas.
Os dois permaneceram na escuridão da sala enquanto o som se aproximava.
— E se a gente se fechasse aqui no meu escritório?
— Esse som pode ser alguém tentando arrombar alguma outra sala do corredor. Não podemos ficar trancados aqui dentro da sua sala. Precisamos sair.
— Não podemos?
— Não! Você tem reunião amanhã! E eu tenho... — ela hesitou — coisas para fazer.
— Gabriela, Gabriela... O que você vai aprontar hoje?
— Carlos, a gente corre o risco de ser assaltado. Sério? Agora?
— Desculpa.
— Faz assim. — Ela procurou algo nas mesas. — Pega a coisa mais pesada ou pontuda que você achar. Se a gente topar com o assaltante, conseguimos assustar ele, pelo menos. Achei! — Ela levantou algo brilhante. — Eu sempre quis furar o olho de alguém com um abridor de cartas.
Carlos segurava uma edição única de O Senhor dos Anéis com dificuldade, mas largou com a resposta.
— Você é assustadora.
— Um livro, Carlos, sério? A coisa mais pesada que você achou foi isso?
— É o peso da literatura. — Por um instante, achou que ia ser o primeiro a ter o olho furado. — Eu não sei o que fazer! Eu... — Ele viu algo num canto que chamou a sua atenção — Eu não via esse guarda-chuva há meses.
Ela tirou o livro da sua mão e colocou o guarda-chuva no lugar.
— Perfeito, agora está armado. Você ataca enquanto ele estiver longe, e eu quando ele estiver perto.
— Isso significa que...
— Sim, você vai na frente.
Carlos foi em direção à porta com passos curtos. Segurava o guarda-chuva como uma criança pronta para brigar na saída da escola. A criança que iria apanhar na briga.
Os dois chegaram à divisa da sala com o corredor e pararam.
— E agora? — Carlos sussurrou
— Vai! — Gabriela sussurrou de volta e empurrou-o.
Carlos deu um grito com o susto que levou. Fechou os olhos e sacudiu o guarda-chuva com golpes até ele abrir sozinho. Quando se deu conta de que nada havia acontecido, escutou as risadas da colega.
— Gabriela, você é a pessoa mais demoníaca que eu já conheci.
Ela fez sinal para que ele a esperasse recuperar o fôlego de tanto rir.
— Ai, ai... eu precisava relaxar o corpo assim, obrigada. — Ela limpou as lágrimas dos olhos. — Fui criada com três irmãos mais velhos, sacanear os outros é mais forte do que eu.
— Eu podia ter morrido!
— Podia! Mas não morreu. — Ela tirou o guarda-chuva das mãos dele e fechou-o. — E ainda nos protegeu de uma possível tempestade.
Carlos se ajeitou e voltou ao prumo. Pegou a pasta e os documentos de trabalho que haviam caído no chão sem nem olhar as folhas e colocou o guarda-chuva debaixo do braço.
— A essa hora, amanhã, minha cena deplorável já vai ser sucesso com as gravações das câmeras de segurança.
Gabriela olhou para ele e apontou o abridor de cartas.
— Agora você me deu uma ótima ideia.
— Conseguir um envelope para você não usar esse abridor em mim?
— Não. Olhar as câmeras de segurança. Se tem alguém andando pelos corredores, vai ter aparecido lá. É só a gente conferir e tirar a dúvida, com certeza, da nossa cabeça. Ou confirmar que não estamos sozinhos, né?
Os dois olharam para o corredor escuro e silencioso do quinto andar, iluminado até onde os sensores detectavam a presença dos dois e englobado em escuridão no resto.
— Dizem que o problema não é estar sozinho no escuro — Carlos voltou a sussurrar. — O problema é não estar sozinho no escuro.
— Carlos — Gabi sussurrou e colocou a mão no ombro dele
— O que foi?
— Você precisa parar de assistir ASMR.
Carlos bufou e tirou delicadamente a mão dela do ombro.
— Ajuda na higiene do sono.
— E por que você assiste durante o dia?
— Porque me deixa mais calmo... peraí?! Como você sabe que eu assisto durante o dia?
— Eu vi o seu histórico de internet no sistema.
— Eu sabia!
— Shhh, fica quieto!
— Eu sabia! — ele sussurrou na mesma entonação — Eu tinha certeza de que o RH tinha acesso ao nosso histórico e ficava fuçando. O seu colega, o do bigode, como é que o nome...
— O Bandeira.
— Isso, o Bandeira! Uma vez ele veio pedir para mim dicas de viagem pra Salvador, curiosamente depois que ouvi uma playlist de axé no trabalho.
— E você já foi para Salvador?
— Ué. — Ele levantou a sobrancelha em tom de deboche. — Descobre no meu histórico, minha pequena Eva.
Gabriela esboçou um sorriso, mas escondeu o rascunho atrás de um soquinho desajeitado no ombro de Carlos.
— Gabriela.
— Que foi? — ela disse braba.
— Câmeras de segurança, lembra?
— Ah, isso! Então, as câmeras ficam no terceiro andar. O molho de chaves que abre a sala das câmeras fica guardado na sala do RH no quarto andar. E a chave que abre a sala do RH está na minha sala, ali na frente.
“A sala com duas suculentas corajosas e cheiro de incenso toda manhã”, Carlos pensou, mas não respondeu.
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