Até com os tentáculos

Domingo, depois do almoço, 14h37. Aline e Renata estavam deitadas na cama, no décimo-terceiro assunto daquele momento de preguiça.

— E foi nesse dia aí que eu percebi que tava muito apaixonada por você, quando você bateu o pé com a minha mãe pra gente viajar juntas! — Aline disse — Lembro da minha mãe dizendo pra mim depois, “Aline, aquela menina, a Renata, gosta muito de você. Nunca tiveram coragem de me desafiar assim.” — ela imitou o sotaque da mãe com perfeição — “Cuida bem dela”.

— Own! — Renata tirou os óculos e puxou Aline pra perto de si na cama — E gosto mesmo. E cuido mesmo.

As duas olhavam para o mesmo ponto no teto do quarto.

— E você? — Aline perguntou para a namorada — Quando percebeu que estava apaixonada por mim?

Renata apertou os olhos, técnica clássica para lembrar de algo do passado.

— Eu percebi que estava apaixonada quando você começou a aparecer em todos os livros que eu lia.

A resposta pegou Aline de surpresa.

— Hm… como assim?

— Ué, sempre que aparecia uma personagem mulher, a imagem que vinha na minha cabeça era você.

— Que amor! Você nunca me contou isso!

Aline deitou a cabeça no peito de Renata. As duas falavam sem se olhar, mas estavam com os braços estendidos para cima, por algum motivo que nenhuma das duas sabia explicar.

— Mas, tipo assim, você lia a descrição e pensava em mim?

— Era automático. O personagem começava a falar “seus olhos castanhos me capturaram de imediato” e pronto, era você que eu imaginava. E ficava pensando em você o livro inteiro.

— Que fofa — Aline puxou a mão da namorada e beijou seus dedos longos — A dos olhos castanhos é a personagem do Segredos de um Vestido, né?

— Isso.

— Esse eu li. E em qual livro mais eu apareci?

— Hm, deixa eu lembrar. No Confissões de um Carnaval, você estava lá.

— Mas a personagem é loira.

— Você pintou o cabelo. Fica linda loira.

— Ok. Mais qual?

— No Império de Lã e Sangue, você era a imperatriz.

— Mas a imperatriz é a vilã!

— E você foi ótima como vilã! Cruel. Efetiva. Gostosona.

Aline riu.

— Ok, mais qual?

Renata ficou em silêncio um tempo. Uma risadinha envergonhada saiu rebelde pelo canto da boca.

— Renata…

— Esses dias eu li um livro daqueles eróticos, rapidinho, curtinho,

— Rê, por favor.

— Não julgamos leituras alheias nessa casa! Eu tava na fila do banco sem nada pra fazer e o download do e-book era gratuito!

— Quem pega fila do banco hoje em dia?!

— Quer saber do livro ou não?

— Sim, por favor.

— Era As quadrigêmeas do CEO. Vou te mostrar a capa.

— Não precisa, consigo imaginar. Eu era o CEO ou a amante?

— Você era a secretária que não aguentava mais aturar as histórias de traição do chefe.

— É bem meu tipo mesmo.

Renata colocou outro travesseiro atrás da cabeça para ajudar na memória.

— Você também apareceu em “Histórias da Terra - Volume 2”

— Amor, esse é um livro didático!

— Você já leu sobre Cleópatra? Igualzinha a você. Ah, teve um PDF que baixei, Preparação para Concurseiros.

— Amor…

— Aline Maria Xavier, você solteira foi definitivamente um concurso com poucas vagas — as duas começaram a rir — Ah, e teve o Crônicas Submarinas de Anteontem, aquele volume gigante de fantasia que eu estava lendo.

Aline segurou a risada com a força da dúvida.

— Renata, todas as pessoas têm tentáculos naquele livro.

— E daí? Já imaginou você com tentáculos?

Ela colocou a mão aberta abaixo do queixo da namorada e balançou os dedos como se eles fossem tentáculos flutuando na água.

— Naquele mundo os tentáculos são um sinal de poder e sensibilidade. Você devia ler.

Aline não sabia o que dizer.

— E você gosta de mim até com os tentáculos?

— Até com os tentáculos.

Ela beijou a mão de Renata de novo.

— Eu acho que acabo de perceber de novo como estou apaixonada por você.

As duas chegaram mais perto para se beijar e se tornaram um emaranhado de cabelos, travesseiro e edredom.

— Sem julgamentos, mas… — Aline começou.